quarta-feira, 4 de dezembro de 2019 0 comentários

Monomania



Sobre o amor não sei tanto, mas se por acaso alguém me pergunta de você, saberei te dizer dos pés à cabeça, dos detalhes e minúcias de cada traço. Dos fios, da pele e suas camadas, do seu sangue, da carne e de todos os outros órgãos. Saberei te dizer um tanto mais que isso se porventura também me perguntarem da sua alma. Saberei transcender as margens do teu corpo e falar do que você é, do que te escapa e o que te sustenta. Saberei dizer dos teus amores e dos teus repúdios, das tuas birras, teus caprichos e teus medos. Saberei te dizer porque enquanto você não me olha estou te devorando aos poucos, aos bocados, te tomando para mim instintivamente, desonestamente e subversivamente. E saberei que se por qualquer engano que haja alguém vir querer saber de você, eu irei te dizer desvairado sem juízos, sem restrições.  Isso o faço por crer que desse jeito você, enfim, saberá também de mim, mesmo que em descasos.
Mas depois de tudo, direi também do que sou. Deste eu que está um tanto de você. Direi que te engoli de todas as formas, que existem pedaços seus que trafegam pelo meu corpo. Direi que enquanto você não me enxergar continuarei roubando você, até se sufocar dentro de você mesmo. Até eu me transbordar inteiro de você. Até seus fragmentos se encaixarem dentro de mim como um quebra-cabeça vai aos poucos desvendando o enigma da imagem. Até eu te formar inteiro em mim e perder a mim mesmo. Até você descobrir a minha existência que ameaça se perder. 
Mas se por alguma eventualidade, ou instante qualquer você me perceber, te direi que te roubei inteiro só porque sobre o amor não sei tanto. 


domingo, 20 de outubro de 2019 0 comentários



Vida,
Teus instantes me obrigam a seguir o compasso inconstante de um tempo que se sustenta apenas nos teus quereres. Te fazes mesquinha e miserável. Não percebes o quanto me ajusto para caber em cada segundo desse ciclo incansável. Te esqueces o tanto que me dedico a cumprir com as insanidades que me cobras e cruelmente vens a me retribuir com o que menos desejo.
Quando irás notar a minha existência e tudo que almejo a te mostrar? Há da saber que, por vezes, me exausto e não sei até quando serei súdito das tuas cobiças.
Apenas me enxergas uma única vez e dá-me a chance de entregar-lhe um pouco de mim, do que verdadeiramente me pertence. Me permites isso. Deixa que, mesmo sem querer, por uma brecha, eu possa descumprir com a ordem das coisas e ser um pouco de mim mesmo.
Só para que, enfim, eu perceba qual a graça de permanecer nessa trama onde apenas tu decides quem irá carregar consigo os prazeres ou os desgastes desse instante em que chamamos pelo teu nome: Vida.

quarta-feira, 25 de setembro de 2019 0 comentários

Entre eu e as linhas






Me restam as palavras. Elas se sucumbem diante deste vazio fúnebre que entorna entre os meus dias. Faço-as minhas companheiras e venho a juntá-las como em retalho, tecendo uma por uma, formando a beleza dos versos que poetizam a cada rima.
Elas se instauram pelas lacunas mórbidas e próprias de minha existência, mas chegam e inundam cada espaço com uma beleza discrepante que possui a arte de desvendar o encanto oculto por entre esses infortúnios.
Revisto-me com os escritos que denunciam a essência de quem o criou. De mim. A cada novo personagem esconde-se um tanto do que eu sou ou já fui um dia. E por mais que os tente encobrir, eu mesma me exponho.
Quem os lê pelos avessos, percebe-os. Por isso costumo dizer que entre as linhas do que escrevo esta a mim mesma.


segunda-feira, 23 de setembro de 2019 0 comentários

Reenceto



Abro os meus olhos e o enxergo pela última vez. Descruzo os braços que prendiam o meu corpo e os deixo esticados sobre a cama. O lençol fino e desajeitado cobre pequenas circunferências suas, esbanjando aquela pele que ainda tem a minha cor preferida. Esqueço disso. Tento lembra do que me fez desviar do seu abraço noturno, a esgueirar-me diante da porta e a abandoná-lo como assim ele me fez há tempos e eu ainda não havia me dado conta. 
Visto-me. Destravo a fechadura e escapo como uma presa se desvencilha das garras insaciáveis que a fisga. Alegro-me com a adrenalina desse momento e cortejo em silêncio a mim mesma pelo feitio. 
De imediato venho a assustar-se pela firmeza dos meus atos. A repensar sobre o acontecido. A querer voltar no tempo e desfazer cada instante. A querer seu corpo alojando o meu, firmando-se a cada curva minha e trazendo a segurança que passo a sentir falta. E sinto muito. Sinto pelo meu abandono e por imagina-lo acordando e procurando-me por debaixo das cobertas. Por se dar conta que pela manhã ele não irá encontrar o meu corpo para saciar a si próprio. Por dessa vez não poder estar dentro de mim. Pela raiva que irá sentir. Por não esperar um retorno meu e sair desvairado alastrando seu charme a todas as mulheres que encontrar. Por escolher uma delas, toma-la para si e fazer sua refém. Sinto por notar pela primeira vez o seu desprezo e minha reverência a ele. 
Mesmo afogando-se em tudo aquilo que me faz lembra-lo, venho aos poucos desfazendo-o de mim. Desmorono e reconstruo-me a cada tentativa. A cada passo. Mas apenas assim sintetizo aos poucos os espasmos insalubres que ele havia instaurado aqui. 
E tento.

sábado, 14 de setembro de 2019 0 comentários

Nu

Desfaz as malas, retira os bocados de excessos que pesam mais do que deviam
Despe suas vestes e assegura-te que não sobre nada
Encontra-te de frente para mim e me enxerga como sendo o teu reflexo
E então me olhas como se fosse a ti próprio
Como se a existência de nós dois se fizesse em um só
Assim, apenas assim desvendarei a mim mesmo
Estando eu submerso em ti.
 
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