segunda-feira, 3 de agosto de 2020 2 comentários

Fratura



Acho que algo se quebrou aqui. Às vezes desconheço o que me pertence, e se por algum motivo vim a me romper não sei se de fato aconteceu. Devo ter tantos ajustes e remendos e costuras, que se surge mais um rasgo eu mesma fico sem me dar conta. Mas dessa vez notei, mais uma vez, e mais que nunca eu senti a fratura. Está exposta e quase indecifrável. Olha aqui e perceba o quanto de corpo ainda me resta. Talvez não seja muito, mas pode ser suficiente para refazer o dano que causou. Já foram tantos, aliás. Mas cura, e as marcas somem, é o que dizem. Se pudéssemos apressar o tempo ou regressar nele para desfazer nossos encontros. Ou se pudéssemos então apagar as memórias ou comprar um novo corpo. Se eu pudesse ser uma outra coisa, um ser diferente deste, e não precisasse de tanto só para poder existir…
Nenhum ‘se’ é possível, eu sei. E mesmo sendo, a vida daria um jeito de me fazer fraturas constantes, como diz a regra. Talvez eu precise apenas me ajustar ao tempo e seguir com ele o quanto for necessário até a próxima fenda. Me basta juntar os retalhos e ir me formando novamente, unindo pedaço por pedaço com uma linha, e seguir. Até o próximo. 





terça-feira, 17 de março de 2020 0 comentários

Part(ida)

Por onde ir quando não existe direção? Os caminhos às vezes mudam o sentido quando algo se muda dentro da gente. Por vezes só é preciso que uma parte nossa deixe de nos pertencer para desviar um destino completo. É o que causa o amor quando já não é amor. E agora venho a saber disso como quem aprende à força uma tarefa indesejada. Como quem, mesmo não querendo, se vê suspenso num vão que lhe impede de seguir o mesmo percurso de antes por não ter mais quem o acompanhe. 
Um dia eu soube sobre o amor, e na mesma intensidade estou sabendo também sobre a falta dele. Vivo na indiferente maneira de me guiar nesse percurso desconhecido onde desaprendi a ser só, e sou forçado a dar passos onde o meu único querer se resume em não continuar. Então resta-me a estranheza de se ajustar a esse espaço que não cabe apenas a mim, que ainda deixa os rastos do alguém que se foi há pouco e nem sequer fez questão de levar tudo de si, e que me faz sentir-se menor do que já sou.
Restam uns poucos retalhos sem serventia alguma, pedaços que se juntos não trazem forma, mas que me foram deixados para serem lembrados de algum modo. E eu os recolho, como recolho os vestígios de memória, de momentos, da presença, de algo bom. 
Avisto novamente a linha tênue que contrasta entre o amor e a falta do amor, e mesmo não querendo já me vejo expulso de um lado e submerso no outro sem cautela, sem serventia. Sendo apenas alguém que é banido por não ter o mérito de pertencer a um lado da vida, por não carecer ser digno de um pouco mais de afeto ou seja lá o que possa vir a ser. E aqui, deste lado impróprio da existência tenho que recompor a mim mesmo, recomeçando pelo início, ou talvez pelos avessos, traçando um destino sem direção alguma, mas que seja suficiente para que eu possa dar um passo por vez.
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020 0 comentários

Ensaio sobre o caos


O tempo de hoje já não é o mesmo. Tudo nos urge e somos forçados a dar passos largos, aumentar o ritmo das coisas e a se ajustar ao que nem nos pertence. O tempo de agora obriga a gente ser um tanto mais do que deveríamos, e cumprir o ofício de tornar-se alguém para além de nós mesmos. Quase não sei como seguir o arranjo desses impasses, e por vezes minhas próprias pernas se esvaem diante dessa confusão moderna. Me torno vulnerável ao caos que nos atravessa. Quem de nós há de saber como se esquivar desse percurso ilusório que nos direciona para um abismo dessa gente programada? Quando há de surgir um momento em que nos remeta à gênese de nossa existência para recompor o simplório de uma vida? Somos a junção degradante de uma finitude supérflua onde o que mais vale é o acúmulo inútil das coisas. E assim todos sobrevivem desvairados na ideia de que agora são mais vívidos do que antes. Fingem para si mesmos como se acreditassem nos próprios enganos, mas apenas vagam feito fantasmas subalternos regidos por uma ordem disciplinária regente do que devem ou não pregar. Obedecem. Tornam-se eles vítimas das próprias armadilhas, culpam a si próprios, assolam o pouco que lhes restam. E seguem na crença de que são sim os donos de uma verdade inexistente, mas o suficiente para que se perpetuem dissimulados e insanos.
quarta-feira, 8 de janeiro de 2020 0 comentários

Súplicas ao cuidado









Apressa-te, pois tudo agora já me basta.

O estertor que comporto exibe-se diante de mim como se soubesse o quanto não mais o suporto.

As pregas do rosto enraízam nas minhas veias e se sucumbem a tudo que me existe.
Envelheço por dentro e por fora.
Por isso apressa-te que teu tempo ainda é lento mas o meu não demora chegar.
Segue comigo esse percurso da vida onde não me permitem andar sozinha.
Retira as vaidades que te rodeiam e se dedicas a mim por esse pequeno instante que me pertence.
Seja agora o que um dia fui a ti.
Se não sabes, o cuidado se faz quando notares que eu também sou parte tua.
Contradizes o tempo e me tens como tua filha.
Reinventa a maternagem, me retira de teu útero e devotas o cuidado que agora necessito.
Apressa-te, pois tudo já me basta.
Vem até aqui, menina. Doa-se um pouco a mim. 
Por que não vês que agora sou eu quem te carece? 
Estou a teus olhos. Me enxergas como antes fazias.
Queria eu poder chamar-te de filha e desvelar novamente os teus passos.
Pudera eu trazer-te de volta para meus braços e retificar o erro de não te ensinar a ser cortês.
Talvez assim irias me ver diferente de agora. 
Talvez assim também irias ao menos por um vez chamar a mim pelo que tanto conheces mas agora insistes em negar.
Talvez só assim pudesses, finalmente, voltar a me chamar pelo nome de Mãe.





 
;